1
Marquito viu o Saci Pererê. Dodô, a carruagem de Ana
Jansen. O Percival garantia ter levado uma carreira do Touro Encantado na ilha
dos Lençóis, chegando a mostrar um arranhão nas costas que teria sido produzido
pelo chifre do animal.
Eu achava que muita coisa ali era mentira, porque
minha avó dizia que depois de olhar um fantasma a pessoa deixa de ser normal.
Ou fica lerdo, ou fala bobagens o tempo todo, ou simplesmente bate as botas. E
nenhum daqueles meus colegas parecia precisar de tratamento em clínica de
recuperação mental. Ou ter partido desta para melhor.
Claro que eu podia mentir me gabando de ter visto
isso e aquilo. Mas eu preferia sempre seguir os ensinamentos de minha sábia avó
que dizia: mentira tem as pernas curtas, curtíssimas. Cedo ou tarde acabam
descobrindo suas lorotas, você cai no descrédito e seu nome afunda na lama.
Minha avó também costumava dizer que ser humano é bicho
esquisito. Que faz as coisas mais estúpidas quando por algum motivo se sente,
tipo assim, “por baixo”. Exemplo: Se um
vizinho compra um carro, o outro vizinho quer comprar um melhor. Se um parente
compra uma casa na praia, o outro também vai querer uma, só que melhor. Se uma
família sai de férias para o estrangeiro, a outra família quer fazer o mesmo,
ainda que fique endividada até o gogó.
Pois bem, era mais ou menos o que estava acontecendo
comigo. Com o agravante de que eu estava sendo ainda mais idiota do que todo
mundo, porque em vez de desejar coisas legais como carro, casa na praia ou
viagem pro estrangeiro, eu estava pedindo para ver um espectro. E mais feio,
mais assustador e mais terrível que todos aqueles que meus colegas diziam ter
encontrado pela frente.
E com qual fantasma eu queria ter esse cara a cara?
Anotem aí: com a Manguda.
E por que a Manguda?
Porque, para quem não sabe, naqueles tempos a Manguda
era de longe o fantasma mais assustador, mais letal e temido da cidade.
Havia, é claro, outros tipos. A macabra Ana Jansen, por
exemplo, que circulava em sua carruagem puxada por cavalos descabeçados.
E a Serpente Encantada, que não era fantasma nem nada,
mas era como se fosse, porque botava muita gente pra correr.
Mas não tinha jeito: por aqueles dias, a boa fase era
mesmo da Manguda. Que deixava lerdo, doido ou abobalhado quem desse o azar de encontrá-la
pela frente.
2
O primeiro deles, me munir de qualquer coisa que pudesse
me valer contra o fantasma. Na gaveta da minha mãe, capei uma figa. Com a
desculpa de que estava com saudades da tia Berenilce, fui na casa dela e raspei
um crucifixo do seu oratório. Na cozinha de casa, passei a mão grande numa
réstia de alho com umas dez cabeças, pensando: se vampiro que é vampiro não
resiste ao alho, provavelmente um fantasma também não. Por fim, depois de
juntar tudo num saquinho, escondi o patuá debaixo da cama a fim de pegar na hora
apropriada.
Comecei, em seguida, a pesquisar sobre a assombração.
Isso porque para enfrentar um inimigo, o melhor é você saber tudo a respeito de
com quem está lidando.
Na época não tinha internet, o que dificultava as
coisas.
Mas pra minha sorte, lá em casa tinha a Maricreusa, a
secretária, uma espécie de google dos tempos idos quando o assunto eram
coisas do outro mundo.
Com seu jeito assustadiço e o olhão quase escapando
das órbitas, ela primeiro me aconselhou a não fazer aquela loucura. “Se quer um
conselho, Cleomarzinho, desista, ou só vai dar pra sua radiola”, ela disse,
torcendo a boca.
Decidido que estava, insisti, insisti e insisti. Até que
no final das contas ela cedeu.
Então, entre outras coisas, Maricreusa falou uma que
poderia significar a diferença entre meu sucesso ou fracasso naquela empreitada.
Entre eu voltar pra casa andando com a minhas as pernas e com o controle dos
meus sentidos, ou me arrastando, falando besteiro como um zoró.
E o que ela disse é o seguinte: que o mais importante
de tudo era eu jamais deixar que o fantasma me olhasse antes. Se eu conseguisse
isso, teria a alma penada em minhas mãos. Caso contrário, se o fantasma me
visse primeiro, eu estaria simplesmente perdido. A Manguda me envolveria com
seus poderes, me subjugaria e me levaria para suas dimensões assombradas. De
onde, se eu chegasse a retornar, seria, na melhor das hipóteses, como um
Mangudo Mirim.
Pronto. Agora estava tudo nos trinques para o meu
encontro radical com a aparição.
Quando me ocorreu um detalhe que até então tinha
passado despercebido: como provar que eu tinha realmente tido um cara a cara
com a Manguda? Apenas minha palavra de honra bastaria? E se não bastasse,
valeria a pena correr tantos riscos para no final ainda passar por contador de
lorotas?
Não, claro que não valeria a pena.
Eu tinha, como dizia minha sábia avó, de matar a
cobra e mostrar o pau.
Eu precisava de prova, de testemunha. Mesmo porque,
pra falar a verdade, eu não andava com essa bola toda na escola.
Foi então que me lembrei de um amigo que nesse departamento poderia ser muito útil. O seu nome era Frick.