quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Kássia Borges: arte indígena das telas para os livros

 



Fonte: blog Companhia das Letras


Embora tenha se tornado mais comum (ou menos difícil) encontrar livros infantojuvenis escritos por autores indígenas - muito por conta da lei 11.645, de 2008, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena -, o fato é que ver trabalhos de ilustradores originários ainda é raridade entre os livros para crianças e adolescentes. Por isso, quando um livro desses surge, chama tanta atenção.

É o que acontece em A festa da onça (Brinque-Book), escrito pelo jornalista maranhense Wilson Marques e ilustrado pela artista visual indígena Kássia Borges. Ela, que já fez exposições fora do Brasil, ilustra seu primeiro livro infantil, que conta a história de uma onça muito mal intencionada que convida o coelho para uma festa em sua casa. O que ela não imaginava é que o coelho seria mais esperto e transformaria tudo em uma festa de verdade! O bichinho convidou vários e vários animais: teve cobra, macaco, cururu e muito mais.

Kássia Borges é professora da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, mas nasceu em Goiás. Indígena karajá, do povo Iny, do cerrado, desenvolveu sua linguagem e seu estilo com forte inspiração em suas raízes. "A questão indígena está no meu sangue", declara. Tem telas, cerâmicas e esculturas famosas, expostas em vários locais pelo mundo, mas foi a primeira vez que participou de um livro ilustrado. 

Nesta entrevista, ela conta um pouco sobre o processo de criação e os desafios, além de falar também de suas origens indígenas e da representatividade (ou falta dela) dos povos originários na produção cultural brasileira. Será que sabemos quem somos? 

Como foi o convite para fazer o livro?

Foi muito curioso. Teve uma semana em que recebi alguns convites. A Jaguar Parade [movimento artístico com exposição de esculturas ao ar livre, com o intuito de arrecadar fundos para a conservação das onças] me convidou para fazer uma onça. Logo depois, veio o convite para esse livro, que também é sobre uma onça. Aí eu pensei: então, deve ter alguma coisa, alguma energia de onça na minha vida. Fui pesquisar alguns livros infantis. Tenho olhado bastante para os livros, porque tenho dois netos e gosto de dar de presente pra eles. Acho que acrescenta. Então, me inspirei nos livros que já existem para crianças na hora de criar. Só que, quando mandei alguns desenhos para a editora, ouvi a seguinte resposta: “Kássia, esse trabalho não é seu”. E eu sabia que não era. Mas eu tinha ficado com medo de fazer no estilo em que estou acostumada a fazer.

Por que teve medo?

Como fui chamada para fazer um livro infantil, achei que tinha de fazer como a maioria das pessoas fazem. Meu trabalho é bastante carregado. Então, fiquei com medo de a ilustração ficar mais forte do que a história. Meu trabalho tem muitos símbolos, muitas pinturas corporais… Mas, na hora em que soube que queriam o meu trabalho, entendi que podia ficar livre. Uma das páginas mostra a onça cozinhando o coelho. Quando eu fiz essa ilustração, mandei e a editora me disse: “Agora, estou começando a te reconhecer”. Aí ganhei mais coragem. No segundo desenho, ouvi: “É isso! Não fique presa. Você tem que ser o mais livre possível, ser você”. Aí, fluiu. 


De onde vem seu traço, seu estilo?

Fui abandonada pelo meu pai aos 6 anos de idade. Não tive contato com ele. Quando me formei, senti necessidade de procurá-lo. Aí, fui para a aldeia e montei um projeto de pesquisa para estudar pinturas corporais. Fiquei lá por um tempo, estudando pintura corporal, aprendendo a fazer ritxokó, que são as cerâmicas mais significativas da etnia karajá - iny, como nos autodenominamos. Sentia a necessidade de me entender, de me descobrir, de encontrar as origens do meu pai. Então, quando fui para a aldeia, meu trabalho mudou. Comecei a fazer o que chamava de “corpóreo”. Eram corpos, para os quais eu transpunha as pinturas karajás.

Mas, como eu já tinha estudado arte contemporânea, queria fazer algo que me representasse, não queria copiar as ritxokó. Eu queria ter a minha criação, mesmo fazendo cerâmica, trabalhando com a minha cultura, queria também uma linguagem contemporânea. Comecei a fazer placas, achatando esses corpos, mas com pintura corporal. A cobra jiboia é uma pintura corporal que a gente faz na perna da mulher karajá e ela está na minha vida o tempo inteiro. Nesse livro, eu reproduzo vários tipos de cobras, jiboias. Só que pessoas que não são da minha etnia, que não são indígenas, nem sempre reconhecem. O livro está cheio dessas referências. 

 

Do que você mais gostou no resultado?

O que eu gosto é que você não enxerga o livro de uma vez. Você tem que ficar um tempo ali, naquela página, para ver todos os detalhes. É com isso que mais me identifico. É a pessoa olhar um trabalho meu e demorar. Os meus trabalhos são assim, você tem que parar e olhar, gastar um tempo. O livro também ficou desse jeito. 

 

O livro fala com as crianças. Como é seu contato com elas?

Tenho contato com crianças desde sempre, como professora, como mãe e agora como avó. E sei da importância da leitura. Pegar um livro, folhear, sentir cada página é muito importante para elas… Uma vez, durante uma exposição minha na Suíça, me perguntaram se, diante de tudo o que estamos vivendo, desmatamento na Amazônia, etc, eu ainda tenho esperança. Eu respondi: 'Toda vez que eu vejo uma criança nascer, eu tenho esperança. Eu encho meu coração de esperança. Não precisa nem consertar. É só você não estragar. Se investíssemos mais nas crianças…' Elas nascem como folhas em branco e vão crescer. Se tiverem uma boa educação, vão mudar as coisas. 

 E as crianças brasileiras recebem pouca educação sobre os povos originários, não é? 

O brasileiro não sabe nada de indígena. Nada. Estou te falando porque dei aula em escola, dei aula para criança. Como pode, no dia 19 de abril - que eu não comemoro, porque não tem nada para comemorar - eles pegam guache, fazem dois tracinhos no rosto da criança, colocam um cocar ou nem isso e começam a emitir som com a mão na boca. Índio brasileiro não faz isso.

A escola não ensina que temos mais de 300 línguas indígenas, 300 maneiras de pensar, 300 maneiras de cortar o cabelo, 300 maneiras de comer, 300 maneiras de se adornar. Eles não sabem. É uma diversidade tão grande que as pessoas não têm noção e acham que não existe mais. Ninguém sabe e não quer saber também. (Kássia Borges, artista indígena)

Você sentiu necessidade de resgatar suas origens e mergulhou nelas. O brasileiro sabe pouco sobre a sua origem?

A vida inteira eu tive essa coisa indígena e tal, mesmo que meu pai não existisse mais. Estava no sangue, mesmo, essa coisa de procurar ser quem eu sou. Todo mundo precisa saber quem é. O Brasil está do jeito que está porque as pessoas não sabem quem são. Se houvesse consciência, não estaríamos desse jeito. Fico pensando no tanto de coisas que poderiam ser ensinadas… Para entendermos quem somos nós, quem é o brasileiro. 

 Os povos indígenas são pouco representados nas produções culturais?

Há uns dez anos, lembro que eu vi um discurso de uma curadora sobre arte contemporânea. Perguntei: 'Quando é que os povos indígenas vão ter espaço? Porque os povos indígenas fazem arte, inclusive arte contemporânea'. Ela falou: 'Isso está com os indígenas. Eles é que têm que cavar o espaço'. Mentira! Isso não é verdade. A escola de arte foi colonizada, tal qual os brasileiros. Fiz faculdade em 1980. Não estudei nenhuma mulher artista, nenhum negro. Se você for olhar coleções sobre gênios da pintura, não tem uma mulher. Isso é que é ser colonizado! Deu muito certo essa colonização. Agora que estamos começando a ver mulheres, negros e, por último, por último, por último, os indígenas. É como se a gente não existisse. 

Diante disso, como se sente, como indígena, falando com quem terá, teoricamente, o poder de transformação, que são as crianças?

Gostei de fazer esse livro e espero que abra espaço para ter mais ilustradores indígenas. Aliás, ilustradores, artistas indígenas, juízes indígenas, médicos indígenas… Eu não sei se vou conseguir ver tudo isso. Estou com 60 anos e agora que estou começando a ver o espaço sendo aberto… A luta é dolorosa. Espero que essa sementinha germine. 

 Ficou com vontade de fazer mais trabalhos assim, de ilustração de livros para crianças?

Se eu for convidada, eu quero! Se tiver mais convites, vou fazer com muito prazer. 

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

CCJM LANÇA DICIONÁRIO DE PERSONAGENS DE JOSUÉ MONTELLO




Com recurso da Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão (FAPEMA) a Casa de Cultura Josué Montello (CCJM) lança em janeiro do próximo ano o inédito Dicionário de Personagens da Saga Maranhense de Josué Montello. Com um total de 1802 verbetes, a obra resgata personagens que aparecem em 15 romances da Saga, como convencionou-se chamar o conjunto romanesco do escritor que, ambientado no Maranhão, se constitui em um vasto e variado painel da história e cultura do estado.  

A diretora da Casa, Joseane Souza, conta que a publicação é resultado de um sonho antigo, concebido inicialmente por Yvone Montello, viúva do escritor, que ao longo de 50 anos registrou em fichas personagens de alguns romances do maranhense. E que agora foi concluído com o trabalho meticuloso de pesquisa que contou com a colaboração de uma equipe formada pelo professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e coordenador do projeto, José Dino Costa Cavalcante; o mestre em Letras e também professor da UFMA, Mauro Cezar Vieira; a especialista em Gestão da Cultura Wanda França e a própria Joseane, diretora da CCJM, para quem o objetivo do Dicionário é ofertar, de forma inédita, um instrumento de pesquisa que favoreça a consulta rápida e prática para pesquisadores e leitores interessados no estudo dos personagens que compõem o universo ficcional de Josué Montello. 

A obra está estruturada por romance, obedecendo a ordem cronológica de publicação. E reúne, em suas 242 páginas, desde personagens de Janelas Fechadas, que marcou a estreia do romancista, até os de obras da sua plena maturidade, a exemplo dos clássicos Os tambores de São Luís e Noite sobre Alcântara. Bom lembrar que o volume não engloba a totalidade da obra romanesca do escritor, cuja vasta produção conta com outros 11 títulos. 

domingo, 26 de novembro de 2023


















LITERATURA NORDESTINA: UMA HOMENAGEM

Fiquei muito feliz com a homenagem que recebi da Escola Municipal de Ensino Fundamental do Campo Limpo III, Luísa Rosário de Oliveira Dias, em São Paulo. O trabalho foi construído pela criançada do 3º Ano e apresentado no dia 21 de outubro passado. Na foto acima, do painel que decorou o cenário do trabalho, eu apareço ao lado do mapa do Nordeste, com o Maranhão em destaque, apresentando meu último livro, A festa da onça.

O livro, escrito em versos rimados, conta a história de como novamente o esperto coelho passa a perna na dona Onça, que até os dias de hoje não desistiu de transformá-lo em seu jantar. Dessa vez, a felina convida o compadre peludo para uma festança em sua toca. O coelho, que adora um forrobodó, fica interessadíssimo em se fazer presente, mas, conhecendo de longas datas as péssimas intenções da pintada para com ele, fica com um pé atrás. Então, pensa que pensa e arranja um jeito de se divertir e, ao mesmo tempo, escapar do que acha ser na verdade uma grande armadilha.

Meu muitíssimo obrigado pela oportunidade em ter participado desse belo momento. Com meus parabéns aos educadores, gestores e, em especial, às crianças.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

COM PATROCÍNIO DA EQUATORIAL, "NOITE SOBRE ALCÂNTARA" GANHA NOVA EDIÇÃO


Depois dos relançamentos dos livros “O tesouro de D. José e outros contos”, “Janelas fechadas” e “Os tambores de São Luís”, é a vez de “Noite sobre Alcântara”, obra-prima do maranhense Josué Montello, ganhar nova edição. A publicação tem lançamento previsto para a segunda quinzena de janeiro do próximo ano e é resultado de uma parceria entre a Casa do Autor Maranhense e a Casa de Cultura Josué Montello. O projeto, que contará com palestras e outras ações, está sendo realizado por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, com patrocínio da Equatorial.

O magistral romance “Noite sobre Alcântara” é ambientado na cidade colonial de Alcântara, no Maranhão, em um momento especialmente dramático da sua história: as últimas décadas do século XIX, quando a economia já decadente da região aponta para o completo colapso com a iminente libertação dos escravos e, mais tarde, a Proclamação da República. Um cenário de incertezas, angústias morais e ruína onde os conflitos humanos se exacerbam e ganham força os protagonistas Natalino e Maria Olívia, ambos filhos de ricaços empobrecidos.

Namorados de juventude, a união definitiva de Natalino e Maria Olívia é quase certa. Porém, enquanto esteve fora, lutando na guerra do Paraguai, ele recebe um diagnóstico de esterilidade que o faz desistir por completo, em sua volta à cidade natal, da ideia de casamento. Seguindo caminhos mais amenos, Maria Olívia passa oito anos em um internato na França, de onde retorna com um apurado gosto pela escrita e pela leitura. É logo tocada, porém, por um infortúnio: ao cair de um cavalo passa a puxar de uma das pernas, tragédia pessoal que a lança numa vida de recolhimento e solidão.

Um aspecto interessante do romance é que, assim como no caso desses dois personagens, a Alcântara do romance aponta, numa melancólica similaridade, a um futuro análogo. Na verdade, um não-futuro, de paulatina e irremediável destruição e sem progênie. Noite sobre Alcântara é um livraço, que merece ser lido pelo que mostra tanto de histórico e curioso na trajetória dessa cidade cheia de mistérios, que é Alcântara. Como também de humano, no melhor e nos piores dos sentidos.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

O que é, o que é?


Quem foi criança (e todo mundo foi, ou é) deve ter, em algum momento, brincado de adivinhações, vertente da cultura popular em que o Maranhão é rico. Pra lembrar e desafiar o leitor, trouxe alguns exemplos. Vamos começar? Como nos velhos tempos, é claro. O QUE É, O QUE É?...


Um sapo embaixo de uma árvore dizendo caia.


Fui homem quando nasci
Mulher quiseram me fazer
Mas tanto acocho me deram
Que homem voltei a ser.


Boca grande
Fiofó pequeno


Na igreja eu batizo
Mas padre eu não sou
Na cozinha sou 'o cara'
Também cozinheiro não sou.


Quando eu vou à missa
Sempre o fiel me espera
Mas eu não sei temperar
Como meu irmão tempera.



Quatro letras tem meu nome,

É fácil de adivinhar.

Criança que não obedece,

De noite venho pegar.



Sou felina brasileira,

Mandona e bem zangada,

Não tenho tinta no couro,

Mas me chamam de pintada.



Um marido e uma mulher

Que não vivem boa ventura.

Quando um chega o outro sai

Sem nem olhar para trás,

Ele é claro e ela é escura.

Adesão do Maranhão à Independência